Os adolescentes e jovens entre os 10 e os 24 anos representam cerca de um quarto da população mundial1. Garantir o seu bem-estar físico, emocional, social e económico é essencial para o desenvolvimento sustentável dos países. A nível global, nove em cada 10 adolescentes e jovens com idades compreendidas entre os 10 e os 24 anos vivem em países em desenvolvimento. Nestes países, registam-se anualmente 21 milhões de gravidezes entre adolescentes dos 15 aos 19 anos, das quais cerca de 50% (aproximadamente 11 milhões) não são planeadas2. Nestes países, as adolescentes grávidas enfrentam riscos elevados de aborto inseguro, devido a diversas barreiras no acesso a serviços seguros de interrupção da gravidez, incluindo legislação pouco clara ou restritiva, estigma social e discriminação. Esta realidade tem sido agravada por crises simultâneas como conflitos armados, mudanças climáticas e a pandemia da COVID-193.
Apesar de progressos significativos na redução da mortalidade materna e infantil nas últimas décadas, os avanços no campo da saúde e direitos sexuais e reprodutivos (SDSR) permanecem limitados em muitos países da África Subsaariana, incluindo Moçambique. Moçambique apresenta uma baixa prevalência de uso de métodos modernos de contracepção entre as adolescentes dos 15 aos 19 anos (14% entre as casadas e 43% entre as sexualmente activas não casadas), uma elevada necessidade não satisfeita* de planeamento familiar (31% entre as adolescentes casadas e 46% entre as sexualmente activas não casadas), uma alta taxa de fecundidade na adolescência (de 158 por 1.000 mulheres dos 15 aos 19 anos) e uma elevada razão de mortalidade materna (de 233 mortes maternas de mulheres de todas idades por 100.000 nados vivos)4. Na última década, o país fez a revisão da lei sobre aborto, permitindo a interrupção voluntária da gravidez por decisão da mulher nas primeiras 12 semanas, sendo também possível em fases mais avançadas da gestação com base em fundamentos legais específicos5. Estimativas recentes indicam 40 abortos induzidos por ano por 1.000 mulheres entre os 15 e os 49 anos6. Moçambique está entre os cinco países do mundo com as taxas mais elevadas de casamentos prematuros7; 14% das raparigas casam-se antes dos 15 anos e 46% antes dos 18 anos4.
Em Moçambique, pessoas com orientações sexuais diversas, e identidades de género e expressões de género diversas, enfrentam desafios no acesso aos serviços de saúde, decorrentes do estigma presente nas famílias, unidades sanitárias e comunidades8. Embora o Código Penal de 20149 tenha descriminalizado a homossexualidade10, a legislação vigente penaliza a discriminação com base na identidade de género, mas não explicitamente com base na orientação sexual, e os mecanismos de responsabilização ainda são frágeis.
Algumas políticas públicas têm procurado dar resposta a certas necessidades de saúde de homens homossexuais e bissexuais, bem como de pessoas transgénero11,12. Um dos objectivos da recentemente aprovada Estratégia de Implementação da Política da Juventude é promover a igualdade de oportunidades para todos os jovens, independentemente da sua orientação sexual, e garantir o respeito pelos seus direitos humanos13. A Associação LAMBDA, organização de cidadãos moçambicanos que defendem o reconhecimento dos direitos humanos das pessoas LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais), integra grupos técnicos do Ministério da Saúde, participando em discussões sobre a discriminação com base na orientação sexual. Além disso, a organização colabora com diversas instituições governamentais na promoção de abordagens mais inclusivas e sensíveis à diversidade. Por exemplo, esta organização colaborou na formação de agentes da polícia e participou na revisão do manual de formação policial, incorporando temas relacionados com a orientação sexual e a identidade de género.
Além disso, outra barreira para o acesso aos serviços de saúde para jovens é o conflito violento. Desde 2017, o Norte de Moçambique, em particular a província de Cabo Delgado, enfrenta uma insurgência prolongada14, com as Forças Armadas de Moçambique, da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral e do Ruanda a combaterem insurgentes que utilizam sistematicamente tácticas terroristas, visando sobretudo a população civil15. Esta situação de insurgência resultou em mais de 800.000 deslocados internos16. As condições que possibilitaram o surgimento da insurgência incluem factores socioeconómicos, governação deficiente e a má gestão dos recursos naturais recentemente descobertos, como o gás natural e os rubis17.
Em Moçambique, as ameaças já identificadas para o pleno exercício da SDSR dos adolescentes e jovens adultos incluem baixos níveis de conhecimento sobre saúde sexual e reprodutiva (SSR) em geral18, e sobre o HIV em particular18,19, bem como o casamento precoce na sua relação com a aceitação e experiência de violência física por parte do parceiro íntimo20. Ainda há pouca evidência sobre as barreiras e os factores facilitadores do acesso e da utilização dos serviços de SSR por parte dos jovens moçambicanos, a partir das suas próprias perspectivas. Além disso, conhece-se pouco sobre o papel das normas sociais na influência do acesso a esses serviços de SSR entre deslocados internos (DI) e não-deslocados internos (não-DI) no País.
A Teoria da Mudança da Oxfam destaca a avaliação de ameaças, incluindo normas sociais prejudiciais, que comprometem os direitos de adolescentes e jovens a “ter uma vida sexual plena e mais segura” e a “tomar decisões sobre reprodução e sexualidade livres de coerção, discriminação e violência”21. Neste contexto, o Guttmacher Institute, a Oxfam Canadá, a Federação Internacional de Planeamento Familiar (IPPF) e parceiros locais em Moçambique — o Centro de Pesquisa em População e Saúde (CEPSA), a Oxfam Moçambique, a Associação Moçambicana para o Desenvolvimento da Família (AMODEFA), a Associação Moçambicana da Mulher e Apoio à Rapariga (OPHENTA) e a Associação LAMBDA — iniciaram um projecto no âmbito do projecto maior Despertai para Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos. Este projecto visa examinar as barreiras que adolescentes e jovens marginalizados e vulneráveis, com idades entre os 10 e os 24 anos, enfrentam no acesso a serviços de SSR de qualidade, bem como identificar os factores que facilitam o acesso aos serviços de saúde e o exercício dos seus direitos sexuais e reprodutivos. O projecto incluiu um estudo qualitativo, realizado em 2023, que explorou as normas sociais relacionadas com o conhecimento e as barreiras para o acesso aos serviços de SSR entre adolescentes e jovens adultos (dos 15 aos 24 anos) de ambos os sexos em três distritos da província de Nampula (Cidade de Nampula, Nacala Porto e Mecubúri), província essa que faz fronteira com Cabo Delgado. Também realizaram-se entrevistas presenciais individuais e aprofundadas com raparigas adolescentes e mulheres jovens (RAMJ), lésbicas e bissexuais, nas cidades de Nampula e Nacala Porto.
O presente documento descreve as principais conclusões e recomendações do estudo qualitativo, que teve os seguintes objectivos:
- Compreender as barreiras e os factores facilitadores do acesso aos serviços de SSR entre adolescentes e jovens adultos vulneráveis e marginalizados com idades entre os 15 e os 24 anos;
- Compreender o impacto das normas sociais na utilização ou não-utilização dos serviços de SSR nas populações-alvo;
- Recolher as experiências de mulheres jovens que se identificaram como lésbicas e bissexuais na procura de cuidados de saúde.
Métodos
Contexto do estudo
Os distritos da Cidade de Nampula, Nacala Porto e Mecubúri foram seleccionados para este estudo devido aos seus perfis demográficos de elevado risco. Localizado no centro da província de Nampula, o distrito da Cidade de Nampula constitui a principal área urbana da província e do Norte de Moçambique22. Com aproximadamente um milhão de habitantes, dos quais 22% têm entre os 15 e os 24 anos, o distrito apresenta uma distribuição equilibrada entre muçulmanos e cristãos (40% e 42%, respectivamente). A idade média da primeira união conjugal para as mulheres, de 18,5 anos, é superior no distrito da Cidade de Nampula em comparação com os distritos de Mecubúri e Nacala Porto.
Nacala Porto, situada na zona costeira Norte da província de Nampula, conta com uma população de aproximadamente 386.000 habitantes, dos quais 22% têm entre os 15 e os 24 anos de idade22. Estima-se que cerca de 79% da população professe a religião islâmica. A idade média da primeira união conjugal para as mulheres é de 17,9 anos, sendo que aproximadamente 9% das adolescentes com menos de 16 anos já estiveram em união conjugal.
Mecubúri, localizado a Norte da província de Nampula, é um distrito predominantemente rural, com uma população estimada em 248.000 habitantes, dos quais cerca de 19% têm entre os 15 e os 24 anos22. Embora a província de Nampula, no seu todo, apresente uma significativa proporção de população islâmica (cerca de 40%), no distrito de Mecubúri, apenas 20% da população identifica-se como islâmica (é maioritariamente cristão, em 61%). Mais de 20% das adolescentes com menos de 16 anos neste distrito já estiveram em união conjugal, sendo a idade média da primeira união conjugal entre as mulheres de 15,7 anos.
Recolha de dados
Os dados foram recolhidos através de entrevistas presenciais individuais e aprofundadas com mulheres lésbicas e bissexuais com idades compreendidas entre os 18 e os 24 anos. Apenas participaram as residentes nos distritos da Cidade de Nampula e de Nacala Porto, porque a Associação LAMBDA, responsável pelo recrutamento das participantes, não tem presença activa no distrito de Mecubúri.
Além disso, realizaram-se grupos de discussão focal com RAMJ em idades entre os 15 e os 24 anos e com rapazes adolescentes e homens jovens (RAHJ) entre os 18 e os 21 anos, tanto em contexto escolar como fora dele, incluindo DI e não-DI. Os grupos de discussão focal são particularmente eficazes na análise de normas sociais, dado que os participantes são convidados a comentar sobre o comportamento de pares e de pessoas semelhantes a si, e não a partilhar as suas experiências pessoais. A equipa de campo enfrentou desafios no recrutamento de participantes para os grupos focais, especialmente no que respeita a jovens mais novos e a DI no distrito de Mecubúri, devido à dificuldade em identificá-los e, posteriormente, em convencê-los a participar nas sessões.
Tabela 1: Critérios de inclusão por componente do estudo | |
Componente do estudo | Critérios de inclusão |
Entrevistas em profundidade | Mulheres cisgénero de 18–24 anos, que se identificavam como lésbicas ou bissexuais e residiam nos distritos da Cidade de Nampula ou de Nacala Porto. Todas as participantes estavam ligadas à Associação LAMBDA e integravam a sua rede de apoio entre pares. |
Grupos focais com RAMJ, sendo elas DI e não-DI, de 15 –24 anos | RAMJ de 15–24 anos, a frequentar ou não a escola, residentes nos distritos da Cidade de Nampula, Nacala Porto ou Mecubúri. Para as participantes menores de 18 anos, foi necessário obter consentimento parental para participar no estudo. |
Grupos focais com RAHJ, DI e não-DI, de 18 –21 anos | Incluíram-se RAHJ de 18–21 anos, a frequentar ou não a escola, residentes nos distritos da Cidade de Nampula, Nacala Porto ou Mecubúri. |
Tabela 2: Descrição dos grupos focais, 2023 | |||||
Sexo | Situação de deslocamento interno e grupo etário | Distrito de estudo | Total | ||
Cidade de Nampula | Mecubúri | Nacala Porto | |||
Feminino | DI, de 15–19 anos | 2 | 0 | 1 | 3 |
Não-DI, de 15–19 anos | 2 | 4 | 6 | 12 | |
DI, de 20–24 anos | 1 | 1 | 1 | 3 | |
Não-DI, de 20–24 anos | 2 | 2 | 2 | 6 | |
Masculino | DI, de 18–21 anos | 1 | 1 | 1 | 3 |
Não-DI, de 18–21 anos | 1 | 1 | 1 | 3 | |
Total | | 9 | 9 | 12 | 30 |
Os investigadores de campo realizaram menos grupos focais com as pessoas DI nos distritos de Mecubúri e Nacala Porto, devido à dificuldade da equipa em localizar estas pessoas — muitas teriam, alegadamente, regressado à província de Cabo Delgado. Dado que o estudo se concentrou principalmente em as RAMJ, o desenho metodológico incluiu mais grupos focais com elas, o que permitiu realizar discussões separadas com participantes que frequentavam a escola e com aquelas que estavam fora da escola. Por outro lado, como houve menos grupos focais com RAHJ, os participantes que frequentam a escola e os que não frequentavam foram integrados nos mesmos grupos.
A recolha de dados foi realizada em Macua, uma das principais línguas faladas nos distritos abrangidos. Transcritores bilingues procederam ao trabalho de transcrição e tradução das gravações de áudio para português, tendo as transcrições sido posteriormente revistas e corrigidas pelos próprios investigadores de campo. Os detalhes completos sobre o trabalho de campo encontram-se descritos noutra publicação (disponível mediante solicitação)23.
Resultados
Tabela 3: Características sociodemográficas dos participantes dos grupos focais | |||||
Características | Distrito de estudo | Total | |||
Cidade de Nampula | Nacala Porto | Mecubúri | N.o | % | |
Sexo | |||||
Masculino | 56 | 91 | 60 | 207 | 78 |
Feminino | 18 | 21 | 20 | 59 | 22 |
Grupo etário | |||||
15–19 | 41 | 81 | 38 | 160 | 60 |
20–24 | 33 | 31 | 42 | 106 | 40 |
Situação escolar | |||||
Frequentam a escola | 26 | 60 | 24 | 110 | 41 |
Fora da escola | 48 | 52 | 56 | 156 | 59 |
Nível de escolaridade | |||||
Sem escolaridade | 1 | 4 | 9 | 14 | 5 |
Ensino primário | 22 | 40 | 31 | 93 | 35 |
Ensino secundário | 51 | 68 | 40 | 159 | 60 |
Situação de deslocamento interno | |||||
DI | 34 | 31 | 14 | 79 | 30 |
Não-DI | 40 | 81 | 66 | 187 | 70 |
Religião | |||||
Cristã | 59 | 18 | 59 | 136 | 51 |
Islâmica | 15 | 94 | 21 | 130 | 49 |
Estado civil | |||||
Solteiro(a) | 61 | 93 | 51 | 205 | 77 |
Casado(a)/em união | 13 | 18 | 29 | 60 | 23 |
Separado(a)/divorciado(a) | 0 | 1 | 0 | 1 | 0 |
Total | 74 | 112 | 80 | 266 | 100 |
Tabela 4: Características sociodemográficas das participantes das entrevistas em profundidade (RAMJ lésbicas e bissexuais) | ||||
Características | Distrito de estudo | Total | ||
Cidade de Nampula | Nacala Porto | N.o | % | |
Grupo etário | ||||
18–19 | 4 | 2 | 6 | 21 |
20–24 | 9 | 13 | 22 | 79 |
Orientação sexual | ||||
Lésbica | 7 | 5 | 12 | 43 |
Bissexual | 6 | 10 | 16 | 57 |
Situação escolar | ||||
Frequentam a escola | 7 | 8 | 15 | 54 |
Fora da escola | 6 | 7 | 13 | 46 |
Nível de escolaridade | ||||
Ensino primário | 1 | 0 | 1 | 4 |
Ensino secundário | 10 | 11 | 21 | 75 |
Ensino superior | 2 | 4 | 6 | 21 |
Religião | ||||
Cristã | 9 | 6 | 15 | 54 |
Islâmica | 4 | 9 | 13 | 46 |
Estado civil | ||||
Solteira | 12 | 11 | 23 | 82 |
Casada/em união | 1 | 4 | 5 | 18 |
Total | 13 | 15 | 28 | 100 |
Uso de contraceptivos
Os jovens demonstraram preferência por métodos contraceptivos modernos, mas referiram que a falta de stock e a disponibilidade limitada de métodos comprometem a sua capacidade de exercer os seus direitos sexuais e reprodutivos.
Entre as percepções negativas associadas ao uso de contraceptivos surgem crenças como a de que a sua utilização pode incentivar a promiscuidade ou causar infertilidade.
Vão falar que essa está planear para ser prostituta, no quer ter filhos agora, está se prevenir para ficar assim mesmo só fazendo negócio. (jovem homem, grupo focal com não deslocados internos de 18–21 anos, Mecubúri)
Nos bairros quando uma moça faz o planeamento familiar, as senhoras do bairro falam que: ‘Você está a fazer planeamento e ainda não te casaram, não tens filho, se chegar a fase de você querer ter filho no futuro não terás filhos’. (mulher jovem, grupo focal com deslocadas internas de 20–24 anos, fora da escola, Nacala Porto)
Uso do preservativo
As RAMJ (bem como os RAHJ), obtiveram informações sobre preservativos durante consultas nos serviços de saúde, nas escolas, em palestras realizadas nas unidades sanitárias e também através de amigos e parceiros sexuais. Elas reconheciam que as informações recebidas nas escolas e nas unidades sanitárias eram mais completas do que as obtidas a partir de outras fontes. As informações adquiridas na comunidade tendiam a ser mais genéricas.
Preservativo costumam ensinar, eh, por exemplo numas palestras da saúde com aquelas activistas… Elas têm um desenho fora daquilo que está ali no papel. Costumam trazer um boneco dele, uma imagem semelhante a sexo de homem. E também costumam a ter uma imagem semelhante a sexo de mulher. Então, eles levam aquela imagem de homem e levam aquele preservativo, abre, ensinam como pegar e como colocar, e ao tirar também ensinam como tirar e como amarrar. (mulher jovem, grupo focal com não deslocadas internas de 20–24 anos, fora da escola, Cidade de Nampula)
O conhecimento sobre o preservativo feminino era, de forma geral, muito reduzido. Em Mecubúri, as RAMJ que conseguiam obter preservativos femininos referiram utilizá-los como pulseiras, retirando o anel interno de borracha.
O preservativo feminino é de difícil acesso, porque dentro dele tem uma pulseira que temos retirado e colocamos no pulso. Por isso não nos dão… porque o que nos interessa são as pulseiras. (mulher jovem, grupo focal com não deslocadas internas de 20–24 anos, fora da escola, Mecubúri)
Há pessoas que usam uns [umas] 10 ou mais nos pulsos… As enfermeiras no hospital desaconselham essa prática e dizem que o preservativo feminino deve ser utilizado correctamente. (mulher jovem, grupo focal com não deslocadas internas de 20–24 anos, fora da escola, Mecubúri)
Os participantes afirmaram que muitos jovens apenas tiveram conhecimento sobro o uso de preservativos depois de terem iniciado a sua vida sexual.
Por exemplo, uma pessoa que tem 12 anos, 13 anos… não sabe se que uma pessoa costuma se prevenir, só costuma ir assim mesmo. Só de 20 anos pra a frente, 18 anos sabe que, eh, uma pessoa deve se prevenir. (mulher adolescente, grupo focal com deslocadas internas de 15–19 anos, fora da escola, Cidade de Nampula)
Nos grupos focais com RAHJ, referiu-se que algumas raparigas não consideram necessário usar preservativo para prevenção de infecções de transmissão sexual (ITS), se já estiverem a utilizar outro método contraceptivo.
Sim, se nos focarmos nas raparigas acho que, acho eu que as raparigas também não se importam com as doenças elas, elas só se importam com a gravidez, mais nada, elas pensam que é melhor prevenir a gravidez do que as doenças. (homem jovem, grupo focal com não deslocados internos de 18–21 anos, Cidade de Nampula)
Poucos participantes referiram a importância da dupla protecção, ou seja, o uso simultâneo de um método hormonal e do preservativo para a prevenção de ITS.
Adolescentes de todos os distritos mencionaram que o uso do preservativo não é comum, sobretudo na primeira relação sexual. As razões apontadas incluem: desagrado em relação ao preservativo (a mais mencionada), uso de outro método contraceptivo, relações em que o homem dá dinheiro à mulher (interpretação de pagamento por sexo sem protecção), desconhecimento do preservativo e a percepção, por parte de algumas jovens, de que são demasiado novas para engravidar.
São muitos que não usam nada, mesmo que nos falem para usar algo para evitar doenças dizem hu… não anima [risos], anima carne a carne, falam isso mesmo. (mulher adolescente, grupo focal com não deslocadas internas de 15–19 anos, fora da escola, Mecubúri)
Durante as discussões de grupos focais, surgiram ideias erradas sobre os preservativos, incluindo a crença de que estes podem permanecer dentro da mulher após o acto sexual e subir até ao estômago, causando doenças. Foi também mencionado que há quem partilhe entre amigos a ideia de que o próprio preservativo pode causar doenças e infecções.
Aí quando a mulher nega, costuma ter medo do preservativo ficar dentro da vagina dela e acabar entrando na barriga… e quando chegar na barriga vai apodrecer e ela contrair doença. (mulher adolescente, grupo focal com não deslocadas internas de 15–19 anos, na escola, Mecubúri)
Pode te falar você não pode usar preservativo de qualquer maneira, se você usar de qualquer maneira vai se contaminar com HIV. As vezes falam de que esse preservativo vem com a doença aí mesmo, então são dicas de… são dicas dos amigos. (homem jovem, grupo focal com deslocados internos de 18–21 anos, Cidade de Nampula)
Conversas com o parceiro sobre ITS
Quando questionadas sobre como avaliam o risco de infecção associado a um potencial parceiro sexual, as participantes lésbicas e bissexuais responderam, na sua maioria, que realizam testes de ITS em conjunto com o parceiro. O HIV foi a infecção mais mencionada, embora alguns participantes também tenham referido a sífilis e, em menor grau, a gonorreia.
A segunda resposta mais comum foi perguntar directamente ao parceiro se já fez testes de rastreio para ITS.
Eu falei para ele que não ia me tocar sem ele ir para lá [fazer o teste]. (mulher bissexual, 20 anos, Nacala Porto)
As participantes reconheceram que esta abordagem pode ser problemática, uma vez que o parceiro pode ocultar informação.
Os grupos focais referiram ainda que são poucos os jovens que questionam os seus parceiros sobre a possibilidade de terem uma ITS. Os participantes referiram que os jovens muitas vezes não perguntam aos parceiros sexuais sobre as ITS porque não há tempo para tal: Os RAHJ afirmaram que receiam perder a oportunidade de ter relações sexuais se perguntarem ao parceiro, enquanto as RAMJ referiram que, quando estão apaixonadas, evitam perguntar por medo de rejeição. Tanto RAHJ como RAMJ indicaram que os parceiros poderiam sentir-se ofendidos com tais perguntas, interpretando-as como um insulto ou acusação. Um jovem partilhou o que, segundo ele, as suas colegas femininas diriam seguinte nessa situação:
‘Estás a me perguntar isso porquê se bem que você me ama? Se não me amas, é só bazar sua cena [seguir seu caminho] eu não vim pra me perguntares isso’. (homem jovem, grupo focal com deslocados internos de 18–21 anos, Nacala Porto)
Uma jovem expressou como acredita que os seus colegas masculinos reagiriam caso as suas parceiras sexuais lhes colocassem esse tipo de pergunta:
Perguntam: ‘Hii—tens uma doença ou não?’ E ele reponde: ‘Eu não tenho doença se eu tivesse doença ia te conquistar? Então como não me confias vai lá ficar com esse que não tem doença’… E você está apaixonada, quando pensas em voltar e perguntar ficas com medo de te deixarem. (mulher adolescente, grupo focal com não deslocadas internas de 15–19 anos, fora da escola, Mecubúri)
Todos os participantes foram questionados sobre se os parceiros sexuais dizem a verdade quando confrontados com questões sobre ITS. A maioria respondeu que nem todos dizem a verdade, especialmente no caso da infecção por HIV, e que muitos omitem parte da informação. Segundo os relatos, existe uma tendência para mentir sobre ter uma ITS, sendo raro que alguém revele voluntariamente ao parceiro estar infectado.
Ah são todos mentirosos… [risos]… Mas nem todos, depende… Mas a maioria mente. (mulher bissexual, 20 anos, Nacala Porto)
E nesses dias os namorados que costumamos a ter, pode não te falar as doenças que ele tem, e quando sabe que tem doença de infecção, não vai te falar sabendo que está infectado… E se não souber [que está infectado] ele vai te deixar aí mesmo do tipo você [dando a implicação que] é lhe deste a doença enquanto ele sabe que dormiu com uma outra mulher… E ele vai te esconder, te esconder até que pode conseguir injeção lhe picarem [de medicação], lhe darem os comprimidos, até ele curar sem você saber. É difícil você ter um namorado, ficar infectado e te informar que: ‘Hi… já contaminei’. (mulher jovem, grupo focal com não deslocadas internas de 20–24 anos, fora da escola, Mecubúri)
As participantes bissexuais demonstraram ter mais confiança nas informações fornecidas por parceiras sexuais femininas do que por parceiros sexuais masculinos, muitas vezes porque conheciam as suas parceiras há mais tempo.
Quando questionados sobre as razões pelas quais os parceiros podem omitir a verdade, surgiram várias explicações:
Vergonha, vergonha outras, receio de serem julgadas… As pessoas não estão bem [têm ITS] só que nunca vão te dizer que não estão bem… As pessoas nunca vão falar que: ‘Eu estou doente’, só por egoísmo. (lésbica, 20 anos, Nacala Porto)
Os entrevistados têm a percepção de que os parceiros são mais propensos a mentir sobre o número de parceiros sexuais anteriores do que sobre o facto de terem uma ITS.
Observar o comportamento do parceiro ou conhecê-lo bem foi referido como uma estratégia usada para avaliar se trata de alguém com comportamentos sexuais de risco. Alguns participantes bissexuais reconheceram que todas as relações sexuais, independentemente do parceiro, envolvem algum grau de risco.
Quando eu saio, eu não sei o que a pessoa vai ficar a fazer, então não sei… Para mim todas as relações são de risco, todas as relações são de risco… não… não há… eu não há confiança… não sei né, talvez esteja errada, mas todas as relações são de risco, yahh. (mulher bissexual, 23 anos, Nacala Porto)
Barreiras ao tratamento de ITS
Os participantes dos grupos focais abordaram a procura de tratamento para as ITS, tanto em unidades sanitárias como através de medicina tradicional. Os jovens recorrem frequentemente a socorristas (agentes comunitários de saúde) nas suas comunidades ou a contactos em unidades sanitárias para aceder aos cuidados necessários. Contudo, o acesso ao tratamento das ITS pode ser dificultado por sentimentos de vergonha, incluindo o embaraço de convidar o parceiro para fazer o teste, falar com um profissional de saúde sobre os sintomas ou mostrar os órgãos genitais durante a consulta.
Quando vamos ao hospital doentes e nos dizem para ir chamar a nossa parceira para ser atendido juntos… não levamos, sentimos vergonha, preferimos ir para esquina e comprar [algum medicamento para ITS] com um enfermeiro. Temos medo de ser insultados por essa mulher [parceira] naquilo de que: ‘Ha contraíste aí, e vens querer me culpar’. (homem jovem, grupo focal com não deslocados internos de 18–21 anos, Mecubúri)
Eu queria dar exemplo de um amigo. Também tinha gonorreia e daí ele não falou para ninguém, nem foi no hospital. Mas só depois de duas semanas com aquela gonorreia é que as pessoas mais próximas é que descobrem aquilo… Chegava parte de nem conseguir andar e foi aí que as pessoas descobriram que tem gonorreia e daí foram lhe tratar… Mas isso pode ser vergonha mesmo como meu amigo estava dizer [este embaraço impediu o jovem de procurar tratamento mais cedo]. (homem jovem, grupo focal com deslocados internos de 18–21 anos, Cidade de Nampula)
Outras preocupações mencionadas pelos participantes incluíram o medo de serem reconhecidos nas unidades sanitárias, a relutância em receber um diagnóstico e a rejeição do tratamento proposto pelos profissionais de saúde. As discussões indicaram que o estigma em torno do HIV/SIDA continua a ser uma realidade entre as RAMJ e os RAHJ. Por exemplo, foram relatados casos de jovens que negaram o diagnóstico de HIV, chegando mesmo a suspeitar de mentira por parte dos profissionais de saúde. Alguns participantes relataram situações de RAMJ e RAHJ que não tomaram a medicação anti-retroviral fornecida pelas unidades sanitárias por não acreditarem no diagnóstico, acabando por falecer.
Alguns é por causa de medo, não é por estar longe, mas sim medo de ir para o hospital e dizer que contaminei infecção e me divulgarem. (mulher jovem, grupo focal com não deslocadas internas de 20–24 anos, fora da escola, Mecubúri)
Uma RAMJ partilhou o que ouviu as suas colegas do sexo feminino dizerem sobre procurar cuidados de saúde:
‘Só querem me dar [o diagnóstico de infecção]. Só estão a mentir. Onde foi que eu encontrei? Nem, não vou tomar’. E entornam [medicamentos]. (mulher adolescente, grupo focal com não deslocadas de 15–19 anos, fora da escola, Nacala Porto)
Os grupos focais indicaram que ainda surgem complicações quando os jovens procuram tratamento para ITS sem estarem acompanhados pelos seus parceiros sexuais. Quando a relação sexual é esporádica ou casual, muitos relutam em convidar o parceiro para os acompanhar à unidade sanitária.
Lhes complicam para fazer teste quando está sozinha ‘porque essa doença não contraiu sozinha… contraiu com uma outra pessoa’. Complicam ali para te fazer teste sozinha… Te falam para: ‘Trazer essa pessoa que te infectou com essa doença para que nós fazermos teste a ele também, para ficarmos a saber se é ele ou não, se foi ele que te infectou com essa doença’. (mulher adolescente, grupo focal com não deslocadas internas de 15–19 anos, na escola, Mecubúri)
Alguns participantes referiram que há jovens que evitam totalmente procurar cuidados médicos por recearem um diagnóstico positivo para uma ITS.
Muitos têm medo de fazerem controlo no hospital porque quando chegam no hospital, dizem: ‘Faça o teste’, e quando é positivo [e não estão de acordo com o resultado], querem lutar com enfermeiros porque o enfermeiro lhe disse que: ‘Não estás bem’. (homem jovem, grupo focal com não deslocados internos de 18–21 anos, Mecubúri)
Barreiras ao exercício dos direitos sexuais e reprodutivos
Quando questionadas sobre os desafios enfrentados no exercício dos seus direitos sexuais e reprodutivos, as participantes lésbicas e bissexuais referiram a falta de aceitação social, o receio de serem maltratadas pelos profissionais de saúde, a imposição de normas heterossexuais, a experiência de sexo não desejado (dentro do casamento) e a necessidade de ocultar a sua identidade sexual perante parceiros masculinos.
Até a minha mãe não me aceita, a sociedade está de pior. (mulher bissexual, 21 anos, Cidade de Nampula)
Um quarto das participantes lésbicas e bissexuais afirmou não enfrentar barreiras no exercício dos seus direitos sexuais e reprodutivos.
Experiências de discriminação de mulheres lésbicas e bissexuais por profissionais de saúde
As participantes lésbicas e bissexuais relataram sentir que os profissionais de saúde criam um ambiente hostil e discriminatório ao recusarem tratamento, ignorarem pacientes (por exemplo, deixando-as à espera durante muito tempo), e ao proferirem julgamentos de valor, piadas e humilhações.
Ele me deixou ali e saiu… Ele atendia outras pessoas e eu ali a espera. (lésbica, 24 anos, Cidade de Nampula)
Nós não vamos aos centros de saúde porque temos medo de nos imporem, nos exporem, por dizer. Então aí acabamos ficando com medo. (lésbica, 24 anos, Cidade de Nampula)
A enfermeira fez questão de até bater palmas. ‘Você é um homem vestido assim’?… A enfermeira mandou voltar dali… sabe todo mundo… outros começaram a rir… algumas pessoas ficaram em choque, mas mandou voltar…‘Voltar ir se desmontar, pôr calças [e] vir aqui’. (lésbica, 24 anos, Cidade de Nampula)
Tem pessoas que saem, mesmo encontrar uma enfermeira que vai te tratar bem né… influenciam essa enfermeira [não tratam bem todos os doentes], ‘Haa… você não pode cuidar dela, essa é lésbica, essa não vale nada’. (lésbica, 22 anos, Cidade de Nampula)
Foi evidente nos testemunhos recolhidos que existe uma norma social entre os profissionais de saúde que incita o tratamento negligente ou discriminatório de pacientes lésbicas. A maioria das entrevistadas acreditava que as unidades sanitárias não estão preparadas para responder adequadamente às necessidades de saúde sexual e reprodutiva de pessoas com orientações sexuais diversas.
Barreiras no acesso a cuidados de saúde materna
Os participantes dos grupos focais descreveram as dificuldades que jovens grávidas enfrentam quando são rejeitadas pelo parceiro. Nessas situações, o acesso a cuidados pré-natais é dificultado pela exigência de que estejam acompanhadas pelo parceiro masculino. Relataram que, na ausência do parceiro, as jovens são forçadas a pedir um familiar ou amigo para fazer papel de parceiro na unidade sanitária, para poderem aceder ao atendimento.
Existem outras que não vão para os hospitais porque lá costumam querer um casal, mulher e homem, para abrir ficha pré-natal… então quando você fica grávida já não vês o homem que te engravidou, ou já não te assume… Aí não haverá maneira para ir no hospital sozinha, porque não irão te atender… te expulsam e te falam: ‘Traz o homem que te engravidou’… Você vai levar teu irmão para hospital [se fazer passar por marido]… Tem uns [que] sentam em casa até criança crescer por causa de não ter cartão. (mulher jovem, grupo focal de não deslocadas internas de 20–24 anos, fora da escola, Nacala Porto)
Os profissionais de saúde, segundo os relatos, tratam estas RAMJ com desconsideração: são cobradas por serviços que deveriam ser gratuitos, enfrentam longos períodos de espera e são alvo de atitudes de desprezo, mesmo quando se encontram em estado de saúde grave. Algumas RAMJ afirmaram que os profissionais de saúde culpabilizam as mães das jovens por estas terem engravidado, responsabilizando-as pelas consequências.
As enfermeiras por vezes jogam a responsabilidade do trabalho de parto para a mãe da jovem… É quando te perguntam se você não sabia que no hospital tem implante para prevenir a sua filha… ‘Porquê não lhe trouxe há muito tempo? Agora veja [as consequências por não terem trazido a sua filha]’. (mulher jovem, grupo focal com não deslocadas internas de 20–24 anos, fora da escola, Mecubúri)
O papel dos curandeiros, embora culturalmente relevante, pode atrasar o acesso aos cuidados médicos formais. Algumas mulheres recorrem a curandeiros quando suspeitam de feitiçaria ou receiam sofrer um aborto espontâneo. Nestes casos, é comum receberem uma corda para atar à cintura como forma simbólica de “proteger” a gravidez.
Existem aquelas que quando estão grávida[s], logo no final, ficam preocupadas sobre como vai nascer. Te falam ir no curandeiro e lá te falam que foste enfeitiçado[a], e ele procura formas de como tirar o feitiço para você nascer bem. Por exemplo, algumas doenças você vê que é para ir no hospital ou é para tradicional. (mulher jovem, grupo focal com não deslocadas internas de 20–24 anos, fora da escola, Mecubúri)
Aborto
Nos grupos focais, os participantes referiram que muitas jovens procuram interromper a gravidez quando são abandonadas pelos parceiros, sentem vergonha, querem prosseguir com os estudos ou quando têm dúvidas sobre a paternidade.
Mas existem outros homens que não assumem a gravidez e põe[m]-se em fuga ou rejeitam a ela e a gravidez, dizendo que: ‘Não estou a namorar com ela, eu’, sabendo que está mentindo. (mulher jovem, grupo focal com não deslocadas internas de 20–24 anos, fora da escola, Mecubúri)
As decisões de interromper a gravidez são, por vezes, influenciadas pelos pais da jovem ou pelo medo que esta sente de contar à família sobre a gestação. Quando o parceiro masculino não abandona a jovem, os participantes indicaram que a decisão de abortar é frequentemente tomada por ele.
Não é possível mulher abortar sem consentimento do seu parceiro. Primeiro conversa com o namorado que lhe engravidou, e muitas vezes quem decide é o homem se podes abortar ou não. (mulher adolescente, grupo focal com não deslocadas de 15–19 anos, fora da escola, Nacala Porto)
Os métodos de aborto mais mencionados pelos entrevistados foram os da medicina tradicional, recorrendo a misturas de diversas substâncias, como: Coca-Cola, detergente em pó, cabeças de palitos de fósforo, e raízes e folhas de planta (por exemplo, moringa e aloé vera) fornecidas pelos curandeiros. Algumas RAMJ recorrem a serviços de saúde para obter cuidados de aborto. Alguns entrevistados referiram que as unidades sanitárias oferecem o aborto de forma gratuita, embora algumas mulheres optem por gratificar os profissionais, dando gorjetas. Poucos entrevistados demonstraram conhecimento sobre o aborto medicamentoso (usando comprimidos).
Pontos Fortes e Limitações
- O estudo recolheu dados sensíveis sobre conhecimentos e comportamentos em SSR de jovens difíceis de alcançar e em situação de vulnerabilidade (incluindo minorias sexuais, populações deslocadas e jovens fora da escola) no Norte de Moçambique. O facto de os participantes falarem predominantemente Macua agravou a sua situação de marginalização. Por isso, compreender os seus conhecimentos sobre SSR, bem como os seus comportamentos de procura de cuidados, fornece novas e relevantes perspectivas sobre os riscos que enfrentam e os desafios existentes na sua abordagem.
- Estes dados contribuem significativamente para o conhecimento actual sobre as experiências de cuidados de saúde de jovens mulheres lésbicas e bissexuais no Norte de Moçambique. A escassez de dados nesta área tem contribuído para a invisibilização dos desafios que enfrentam no acesso à saúde. Identificar as barreiras na procura de cuidados representa um contributo essencial para a compreensão das suas necessidades em SSR.
- As informações recolhidas através dos grupos focais oferecem uma visão valiosa sobre as normas sociais destes jovens relativas aos comportamentos e à procura de cuidados de SSR. Estas normas sociais podem ser especificamente abordadas para influenciar positivamente os comportamentos e acções em domínios relacionados com a SSR.
- Uma limitação da amostra prende-se com o facto de a selecção das participantes lésbicas e bissexuais ter sido feita através da Associação LAMBDA, excluindo quem não estivesse ligado a esta organização.
- Os adolescentes com idades entre os 15 e os 19 anos mostraram-se menos participativos nos grupos focais do que os jovens entre os 20 e os 24 anos.
- As entrevistas foram realizadas em Macua e, durante o processo de transcrição e tradução para português, é possível que algumas informações tenham sido perdidas ou mal interpretadas.
- Nenhum dos supervisores de campo ou analistas falava Macua, o que impediu a observação directa da recolha de dados e a obtenção das nuances normalmente captadas através da compreensão da língua local. Além disso, qualquer dúvida linguística em português teve de ser resolvida pelos próprios entrevistadores, ouvindo novamente a gravação de áudio em Macua — um processo demorado e complexo.
Conclusões
As normas sociais que influenciam o acesso e a utilização (ou não-utilização) dos serviços de SSR entre adolescentes e jovens adultos vulneráveis e marginalizados, com idades entre os 15 e os 24 anos, incluem:
- A percepção social de que o uso de contracepção incentiva a promiscuidade e a crença errada de que os contraceptivos hormonais causam infertilidade — ambos constituem barreiras no acesso aos serviços de saúde reprodutiva para adolescentes
- A utilização pouco frequente de preservativos nas relações sexuais, motivada por rumores de que os preservativos ficam presos dentro do corpo da mulher ou causam infecções
- O tabu social em evitar perguntar ao parceiro sobre a existência de uma ITS, porque tal é interpretado como uma ameaça e se assume que haverá desonestidade, sobretudo no que diz respeito ao HIV
- A vergonha associada à procura de cuidados em caso de suspeita de ITS, devido ao embaraço de relatar sintomas e expor os órgãos genitais ao profissional de saúde, o que impede muitos adolescentes e jovens de procurar atendimento
- O estigma persistente em torno das ITS — particularmente do HIV — leva alguns adolescentes a evitarem os serviços de saúde por receio do diagnóstico ou a rejeitarem o diagnóstico e a medicação, em especial no caso do HIV e da terapêutica para a SIDA
- A exigência por parte das unidades sanitárias de que os pacientes estejam acompanhados pelos parceiros para obter tratamento de ITS ou cuidados pré-natais constitui uma barreira adicional à procura de cuidados
- A falta de aceitação social, as experiências de maus-tratos por parte dos profissionais de saúde e o medo de serem maltratadas dificultam o acesso das RAMJ lésbicas e bissexuais aos serviços de SSR
Recomendações
- Os educadores e os profissionais de saúde devem reforçar a educação sobre o uso correcto do preservativo, de forma a combater a desinformação entre adolescentes e jovens adultos. Devem também desencorajar o uso inadequado do preservativo feminino por parte das RAMJ, nomeadamente a extracção do anel interno para uso como pulseira — prática que contribui para a relutância dos profissionais em disponibilizar este método e reduz o stock disponível.
- Dado o papel crucial da comunicação entre parceiros e da revelação de ITS na prevenção e no acesso a cuidados24, os profissionais devem promover a importância dessa partilha, através da desestigmatização das ITS. A representação de uma conversa honesta entre parceiros nos meios de comunicação social pode servir de exemplo para os jovens e promover comportamentos responsáveis.
- Campanhas de sensibilização sobre os benefícios do tratamento precoce das ITS — nomeadamente na prevenção de complicações futuras, como a infertilidade — podem ajudar a superar a resistência dos adolescentes à procura de diagnóstico e tratamento.
- A formação e a educação contínua dos profissionais de saúde devem incluir a compreensão de que os adolescentes se sentem embaraçados ao procurar cuidados para sintomas de ITS e ensiná-los a prestar esse atendimento de forma sensível e adequada a este grupo etário.
- Embora existam benefícios no tratamento simultâneo das ITS em ambos os parceiros sexuais, tal não deve ser uma exigência para o tratamento dessas infecções. Os profissionais de saúde devem prestar cuidados a todos os jovens, independentemente de procurarem tratamento sozinhos ou acompanhados pelo parceiro. A medicação pode ser prescrita para o parceiro, mesmo que este não esteja presente na unidade sanitária.
- Intervenções de advocacia comunitária e institucional são fundamentais para desencorajar a discriminação contra pessoas com orientações sexuais diversas. São igualmente necessárias intervenções específicas dirigidas a profissionais de saúde, com vista a aumentar a sua sensibilização sobre as questões relacionadas com a diversidade sexual e a promover um ambiente acolhedor, seguro e isento de julgamentos nas unidades sanitárias. Isto é essencial para aumentar os níveis de conforto e a capacidade destas pessoas acederem a serviços de SSR.
- Para reduzir a probabilidade de as jovens recorrerem a métodos inseguros para interromper uma gravidez indesejada, as organizações não-governamentais e os prestadores de cuidados médicos devem reforçar a divulgação de que os serviços de interrupção voluntária da gravidez, incluindo o aborto medicamentoso, são gratuitos e acessíveis nas unidades sanitárias.